quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O SENTIMENTO DUM OCIDENTAL

AVE- MARIAS

Nas nossas ruas , ao anoitecer,

Há tal soturnidade, há tal melancolia,

Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia

Despertam-me um desjo absurdo de sofrer.


O céu parece baixo e de neblina,

O gás extravasado enjoa-me, perturba:

E os edíficios, com as chaminés, e a turba,

Toldam-se duma cor monótona e londrina.


Batem carros d` aluguer, ao fundo,

Levando à via- férrea os que se vão. Felizes!

Ocorrem-me em revistas exposições, países,

Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!


E evoco, então as crónicas navais:

Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!

Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!

Singram soberbas naus que eu não verei jamais!


E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!

De um couraçado inglês voam escaleres;

E em terra num tinir de louças e talheres

Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.


Vazam-se os arsenais e as oficinas;

Reluz, viscoso, o rio; apressam-se as obreiras;

E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,

Correndo com firmeza, assomam as varinas.


Vêm sacundindo as ancas opulentas!

Seus troncos varonis recordam-me pilastras;

E algumas,à cabeça, embalam nas canastras

Os filhos que depois naufragam nas tormentas.


Descalças! Nas descargas de carvão,

Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;

E apinham-se num bairro aonde miam gatas,

E o peixe podre gera os focos de infecção!


Excerto do poema de Cesário Verde

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